Parte I - Acidentes

 


24 de Dezembro, Fortaleza - CE.

- Noah! - grita Mirian do andar de baixo, chamando seu amigo. - Vem logo! Vamos nos atrasar.
- Calma, calma! - diz ele, com a voz vinda do quarto. - Eu não tô achando minhas chaves.
- Essas que estão na minha mão!? - diz sacudindo o chaveiro com sarcasmo.

Um silêncio de constrangimento surge e Noah desce as escadas, sem jeito e apressado, pulando alguns degraus com alegria.

- Que horas ele disse que chega?
- Às 19 horas. Já são 18:47.
- Dá tempo… - fala ao chegar no pé da escada, soltando um suspiro para recuperar o fôlego. - Dá tempo.
- Daqui pro aeroporto já pega uns 25 minutos, isso é, se o trânsito cooperar.
- Relaxa, é Natal. Sente a magia. - falar ao abrir as mãos vagarosamente, como se fosse complementar o efeito da frase.
- Meu carro não voa. - diz ela imitando o gesto do amigo.

Ela ri da ingenuidade dele, agora na frente dela, terminando de se arrumar. Noah é um rapaz mediano, com os cabelos rebeldes e cacheados, quase que cobrindo seus olhos, e um sorriso quase que esculpido em seu rosto, fazendo dele um excelente candidato a garoto propaganda de qualquer pasta de dentes.

- Vamos logo. - diz Mirian.

Ela pega a bolsa que está em cima da mesa da sala e saem da casa, trancando-a e indo para a garagem. Entram no carro e ela dirige em direção ao aeroporto.

- Liga o GPS pra mim, por favor. - diz ela concentrada no retrovisor, tirando o carro de ré.
- Claro. - responde ele, pondo o celular no suporte acima do painel e botando o endereço do aeroporto. - Espero que ele não fique bravo se a gente se atrasar.
- Acho que não. Ele é cabeça quente, mas é bem de boa em relação a esses imprevistos. - diz quando finalmente sai da garagem e começa a seguir as orientações do celular.

Em poucos minutos eles estavam no trânsito noturno da cidade, com todos se preparando para o natal. As ruas enfeitadas e iluminadas por várias decorações coloridas e exuberantes, como enormes doces de bengala acima das avenidas e pequenas luzes coloridas e piscantes, enroladas nas árvores, além do led acima do meio fio, deixando a estrada alegre demais na opinião de Mirian.

Param no primeiro de muitos faróis a seguir, fazendo-a bater os dedos ligeiramente no volante, impaciente.

- Desculpa por fazer a gente se atrasar. - diz Noah, percebendo o tique da amiga.
- Não precisa, só, sei lá. Não queria que ele ficasse esperando. Ele vai voltar em três dias, queria aproveitar o tempo que pudesse com ele.
- Eu também, tanto quanto você.

O sinal muda de vermelho para verde e ela segue caminho. Uma longa estrada reta, mas quase cheia de carros e ônibus, levando as pessoas para suas casas e muitas delas, indo viajar para ver a família ou apenas indo descansar para mais um dia que começará em algumas horas.
Na beira das estradas, algumas lojas ainda estavam abertas, cheia de pessoas que decidiram comprar presentes de última hora, e aquelas que saíram para não passar essa noite sozinhas. Independente dos motivos, é uma noite agitada e diferente das demais. Uma agitação boa, que aquece e deixa o coração ansioso para o que está por vir.

- Estamos quase chegando. - diz ela, vendo que o amigo olha distraído para as beiras do asfalto. - Ansioso?
- Coração parece que vai sair pela boca.
- Tem certeza? Te conheço ansioso, e de longe, não é tão calado assim. - diz ela em um tom que soa como um “quem dera fosse”.
- É que… Sei lá… E se ele não gostar mais de mim?
- Vocês são melhores amigos, não acho que—
- Por celular. Faz quase uma década que não nos vemos.
- Esqueceu da páscoa?

Em abril daquele ano, Noah fora a São Luís, no Maranhão, visitar seu amigo, mas poucas horas de se encontrarem, acabou entrando por engano em outro ônibus e acabou sendo levado para outra cidade perto dali.

- Obviamente não é válido. Nos vimos por alguns minutos, e foi pra ele me buscar.
- É, você nunca me contou o que aconteceu pra ter que voltar às pressas pra Fortaleza.
- Tem coisas que vão ficar só entre mim e o coelho…

Mirian faz gestos como se fosse rir, e Noah percebe a tempo para olhá-la seriamente, como se quisesse censurar seu ato, mas acaba rindo primeiro que ela.
Em poucos minutos, chegam ao aeroporto. Ela para o carro na frente da entrada e diz para ele descer, que ela ia procurar uma vaga para estacionar.
Ele desce do carro e quando ia pôr a mão no bolso para ligar para seu amigo, percebe que esqueceu no carro.
“É…” diz para si mesmo “... Não deve ser tão difícil achar ele. É natal”

Quando entra no lugar, percebe que nunca esteve tão errado. Estava cheio de gente, como nunca antes visto, então tinha que bolar um plano para achar ele a tempo. Antes de imaginar um plano, ri de como queria fazer, que seria nada mais do que: “Com licença, você é meu amigo? Não? Ok, desculpe! Ei, com licença…”
Então procura o local de desembarque e tenta focar individualmente nos rostos que passam por ele, mas fica cada vez mais complicado, pois parece que mais e mais pessoas chegam de encontro naquele ponto específico.

- Com licença, seu guarda. - diz ao ver um homem fardado parado a alguns metros dele. - Pode me ajudar, por favor?
- O que deseja?
- Onde fica o desembarque de quem chegou do Maranhão?
- O avião das 19 horas, certo? Fica ali na frente, depois da lanchonete.
- Obrigado! - diz excitante, começando a acelerar o passo para abrir caminho.

No estacionamento…
Mirian para o carro a vários metros da saída do aeroporto, por ser o único lugar que achara. Antes de descer, nota que o celular do amigo toca e ela resolve atender, quando ver que a ligação é de Sandro.

- Alô! Noah, onde você tá?
- Oi, é a Mirian. O Noah tá te procurando, onde você tá?
- Oi, Mirian! - diz alegre ao ouvir a voz da amiga. - Eu tô bem na frente do meu portão de desembarque. Como ele tá vestido? Aqui tá cheio de gente.
- Camisa branca e jaqueta jeans. Se ele não te achar, eu te acho, como você tá?
- Tô bem e você?
- Vestido, tonto!
- Ah! Tô de camisa vermelha e calça preta.
- Tô indo.

Ela desliga a ligação e corre para entrar e achar os amigos.
Lá dentro, Noah falta pouco para subir em um banco e gritar pelo seu amigo, pois mesmo próximo ao portão de desembarque, não vê ninguém que nem sequer se pareça com Sandro, que é um rapaz um pouco mais alto que ele, de pele morena e cabelo curto, com os olhos de baixos, deixando uma aparência de falsa calma, pois quase sempre, Noah lembra do amigo como alguém explosivo quando a situação pede… Ou quando não pede.

- Misericórdia, onde ele se meteu!? - pergunta pra si mesmo, ofegante.
- Deveria buscar nos banheiros. - diz uma voz atrás dele.
- BOA IDEIA!

E por alguns segundos ignora de onde veio a voz, até que se vira e vê seu amigo, com uma mochila nas costas e as mãos no bolso da calça, sorrindo.

- E aí, No一

Antes mesmo que termine de falar, seu amigo pula em seu pescoço com um abraço bem apertado, que quase faz Sandro cair, fazendo a rodopiar para se manter de pé e recuperar o equilíbrio.

- É tão bom te ver! - diz Noah, ainda mantendo o abraço.
- Também… É bom te ver… Amigo, amigo… Dá pra… Meu Deus, não consigo respirar.

Quando Noah repara, Sandro já começou a ficar roxo.

- Desculpa! - diz soltando ele de repente, rindo. - Me empolguei!
- Tudo bem… Uau, meu Deus… - fala seu amigo, ofegante, apoiando-se em seus joelhos. - Ficou mais forte, em?
- Vem, a Mirian tá esperando a gente. Te ajudo com as malas. - diz pegando uma mala que estava perto do amigo, fora sua mochila.

Ele guia seu amigo para a entrada da garagem, que no caminho, passa pela moça de cabelos ruivos.

- E aí! - diz ela, gentilmente.
- Mirian!? - indaga Sandro. - Caramba, como você cresceu!
- Puberdade veio para todos. Pelo visto já foi encontrado.
- Tá mais para eu ter achado ele.
- Vamos, vamos! - diz Noah, alegremente, apressando os passos dos amigos. - Quero te apresentar nossa casa.
- Mal vejo a hora. - responde ele, embora Noah tenha mostrado umas quinhentas vezes por ligação de vídeo e fotos. - O jantar de Natal já está pronto? Espero que ainda tenham espaço para os pratos que aprendi a fazer.
- Se não roubar a atenção do meu peru, tudo bem! - diz Noah.
- Aprendeu a cozinhar peru?
- Sim, foi molezinha.

Rapidamente Mirian olha para seu amigo, com olhar de surpresa, como se lesse todos os pecados dele.

Naquela tarde…

- MIRIAN, ME AJUDA! - grita Noah, com uma vassoura na mão.
- Que gritaria é essa…? - fala ela, bocejando, descendo as escadas. Mas, logo é despertada quando vê o fogaréu saindo do forno. - O QUE VOCÊ FEZ!?

No carro…

- Caramba, não acredito que você tá aqui, de verdade! - diz Guilherme, animado. - Deveríamos passar na praia. Você gosta de praias, né?
- É… Na verdade não. De onde tirou isso? - responde Sandro, intrigado, do banco de trás.
- Ué, nesses dias você postou algumas fotos na praia. Achei que tinha gostado.
- Ah, não… Ali eu só tinha ido visitar… Tinha ido pegar umas coisas. Ai gostei da paisagem e tirei uma foto.
- Entendi.
- Mas e vocês, como estão?
- Bem. - responde Mirian. - Se levar em conta que às vezes penso em expulsar o Noah.
- Exagerada. Estamos nos dando bem, liga não. Se bem, que mal nos vemos, os horários de trabalhos não batem, então vejo a cara dela só no fim do dia.
 
Quando chegam, Noah pega as malas de Sandro e sobe para mostrar o quarto que ele ia ficar. No andar de cima, entre o quarto dele e de Mirian. Quando entra, vê que está tudo bem arrumado e simples, sendo uma cama, uma televisão e o banheiro. O que deixa aliviado, pois sabe como Noah é, e sabe que o estilo dele seria uma faixa escrita: “Boas Vindas!”.

- A Mirian não deixou eu fazer uma faixa de boas vindas.
- Sem problema. - diz ele rindo.
– Eu só vou tomar um banho e vejo vocês lá embaixo, tudo bem?
– Claro. Vou preparar o jantar.
– Não vai esperar dar meia noite?
– … Claro, com certeza… Eu quis dizer aperitivo. Pra aguentar até o natal.

Sandro ri e entra no banheiro quando Noah se retira e fecha a porta do quarto.
Quando desce as escadas para ir à cozinha, vê que Mirian está botando vinho em algumas taças.

– Você nem disfarça. - diz ela, rindo.
– Do que?
– Eu tô muito feliz de ver o Sandro, mas você, caramba!
– Eu sei, é que…Ah, você sabe como sou com amizades. Acho que esse jeito mais—
– Intenso? - pergunta em um tom como se fosse corrigir o amigo.
– É, pode ser. - fala dando de ombros, já que ia dizer outra palavra. - A questão é: a maioria dos meus amigos não são daqui. É minha chance de ter esse contato fora do celular, entende?
– Entendo… - fala ao oferecer uma taça de vinho ao amigo. - Mas, vai com calma. San não é muito natalino, então não vai saber reagir a toda essa empolgação.
– E eu já sei como ajudar! - diz com um tom de reacender os ânimos.

No quarto…
Quando Sandro sai do banho, ouve passos vindos do andar de cima. Supõe que deve ser algum tipo de sótão e ignora, indo se vestir.
Pegando sua mochila ver que tem mensagens de sua mãe e decide responder.

Mãe: Chegou bem?
Sandro: Sim. Já estou na casa do Noah. Feliz Natal para vocês!
Mãe: Obrigado! Para você também :D
Sandro: O pai chegou?
Mãe: Não.
Mãe: Vai pegar o plantão para folgar amanhã.
Mãe: Desanimou quando disse que não viria.
Sandro: Não quero passar o natal brigando de novo.
Mãe: Vocês dois são iguaizinhos.
Mãe: Cara dum, focinho do outro.
Sandro: Hum.
Sandro: Beijos, boa noite!
Mãe: Beijos!

Desliga a tela do celular e deixa na cabeceira, e começa a se vestir. Sem se perceber, se levando pelos seus pensamentos, surpreso por estar ali com seus amigos.
De repente, os passos que estavam sobre eles, estavam no corredor, deduzindo ser Noah.
Mas, tinha algo diferente, os passos estavam pesados e ao mesmo tempo silenciosos, como se fossem silenciados por pisar em algo macio.
Sandro se aproxima devagar, procurando fazer o mínimo de barulho. Quando chega na porta, olha através da fechadura, mas não vê nada. Apenas um borrão vermelho.
Se ergue novamente, e abre a porta de uma vez—

– … Olá! - diz um homem, um pouco acima do peso, com os cabelos e barba grisalhas, grande o suficiente para cobrir sua boca. Usando uma roupa de frio vermelho e branco, junto com um gorro, foi informação demais para assimilar.

Tanto o homem como o Sandro ficam paralisados, olhando um para o outro. Até que, sem pensar, o garoto pega impulso para atacar no homem, que sem se defender, fica se batendo nas paredes.

– C-Calma, amigo… Eu não vou…
– Quem é você!? - pergunta em meio às batidas.
– Me deixa… Explicar… - fala ao virar seu corpo para frente, derrubando Sandro e dando oportunidade de ficar reto, em pé, e ir pegar algo em um saco de veludo atrás dele.

Automaticamente, acha que o homem pode tá armado, então pega o abajur que está no corredor e com toda sua força bate na cabeça dele. É ouvido um estalo da lâmpada e a estrutura do abajur quebrando, seguido da queda do corpo caindo de frente no chão, apagado antes de chegar no que ia pegar.

– Que que tá acontecendo? - pergunta Mirian, subindo as escadas. - MEU DEUS O QUE VOCÊ FEZ!?
– O que foi? O que foi? - pergunta Noah correndo até o local. - VOCÊ MATOU O PAPAI NOEL!?
– Que!? - indaga Sandro. - Papai Noel não existe.

Noah olha de Sandro para o homem, apontando como se fosse algo óbvio.

– Velhinho, de vermelho, com saco de presentes. Me explica então!
– Pode muito bem ser um ladrão disfarçado!
– Eu não acredito que matou o Papai Noel. - diz Mirian, perplexa, chegando cuidadosamente até o corpo.
– DÁ PRA PARAREM DE CHAMAR ELE DE NOEL!? E eu não matei ele.
– Claro que é o Papai Noel. - diz Noah, pondo as mãos nos cabelos cacheados, sem saber o que fazer. - O que vamos dizer às autoridades? Meu Deus, eu vou ser preso no Natal!
– Ele não morreu. - fala Mirian, checando o pulso. - Só está desacordado.
– Viu? Agora vamos levar esse maluco pra polícia.
– Por que vai levar o Papai Noel pra polícia? - indaga Noah.
– Ele não é o—

Antes que diga mais uma palavra, ouvem uma voz aguda, vindo de um tipo de interfone. Eles procuram a origem do som e Mirian, que está bem próxima ao corpo, vê que a voz está vindo de uma bola de natal, presa no cinto do homem. Vermelha com detalhes em dourado, brilhava de acordo com a voz que emitia dela, dizendo: "Noel? Está aí? As renas estão à sua espera! Não se atrase."