Chances

 

- Tem certeza disso? - pergunta o guarda, segurando uma alavanca na parede. Torcendo internamente para não precisar usá-la.
- Tenho. - suas palavras foram um fardo aos ouvidos do guarda, que baixou a alavanca, abrindo a porta à sua frente.
- Se precisar, grite… E peça misericórdia ao seu Deus.

Ao passar, silenciosamente, pela porta, entra em uma sala, sente o ar mais frio. No centro, uma caixa de vidro e dentro dela, uma pessoa, um vulto, sentado em uma cadeira.
Fora da caixa, uma outra cadeira, de frente para aquilo que parece ser uma pessoa. Por mais que a sala seja iluminada, não dá para ver seu rosto, apenas sombras que a luz projeta.

- Que surpresa agradável. - diz com uma voz calma e serena, mas com um leve tom de ironia. - Deixe-me adivinhar, por favor, eu não tenho muito o que fazer por aqui… Você, quer respostas.
- Quero que me diga como—
- Não, não, não… - interrompe, estalando a língua, como se tivesse reprimindo uma criança. - Não é isso que você quer saber, não é?
- Como tem tanta certeza?
- Preciso provar, realmente? As pessoas só me procuram para isso… Devo dizer, é bem cansativo. - diz ao ficar de pé, ainda sem revelar o rosto.
- Como matou as pessoas, mesmo aqui dentro?
- Quer continuar nessa brincadeira mesmo? Okay. Eu não matei ninguém. Pode olhar, seus amiguinhos me vigiavam dia e noite nessa maldita caixa de vidro. - diz com seu tom saindo de ironia para frustração. - É isso que querem provar? Que sou inocente.
- Impossível. As mortes condizem com o seu método. Todos que passaram por suas mãos acabaram exatamente com o mesmo destino. Como explica isso?
- Todos acabaram com o mesmo destino? Tem certeza disso? - a pergunta soou como um breve desafio.

Como resposta, uma pasta é cuidadosamente colocada em seu interior, revelando uma coleção angustiante de fotografias das vítimas, acompanhadas de seus respectivos laudos médicos.

- Devo dizer que foi um ótimo trabalho de pesquisa. - diz ao folhear a pasta. - Mas, mesmo com a resposta na sua cara, não viu ela.
- O que?
- Sabe o que mais me pedem?

Nenhuma resposta é ouvida, apenas se é ouvida o som das folhas sendo passadas pelos dedos da pessoa dentro do vidro.

- Segundas chances. - responde, como se tivesse feito uma pergunta retórica. - As pessoas sempre ficam presas ao que fizeram, e querem de novo. Querem refazer atitudes, refazer as mesmas coisas mais e mais vezes… Mas aí, percebem que eu não posso fazer isso. E o que fazem? Me culpam.
- Aonde quer chegar?
- Está me culpando pela morte dessas pessoas, mas morreram por consequência delas mesmas!
- Vai começar outra vez. Eu não tenho tempo para isso, só responda a maldita da minha pergunta.
- Eu não vou responder o que você já sabe.
- RESPONDA!

Um som de batida é ouvido, fazendo recuar alguns passos. O som veio de dentro, a pessoa soltou os papéis e bateu no vidro, irritada.Ela o olhava intensamente, seus olhos se encontrando em um instante mágico. Por alguns momentos, o tempo parecia perder sua habitual fluidez, como se estivessem imersos em um espaço atemporal. Seus pensamentos se entrelaçam, em uma sintonia profunda que nenhum obstáculo poderia facilmente quebrar. Era uma conexão tão poderosa que transcendeu as limitações do tempo e das circunstâncias.

- Faça. Faça a pergunta.
- Como matou—
- A pergunta que você quer fazer. Não a que foi mandado fazer.

Com um recuo de segundos, olha para as câmeras e como se adivinhasse seu pensamento, o recluso sorri e diz:

- Não se preocupe. Não tem ninguém ouvindo nossa conversa. Confiam em você… E também, odeiam me ouvir, então desativaram o aúdio.
- Por que faz isso com as pessoas?
- Eu não faço nada. Elas beiram isso sozinhas. Eu não posso evitar, apenas existir. Todos acham que tenho todas as respostas, mas não, eu não tenho. Isso que quero dizer a todos que venho aqui. Eu não matei ninguém, nem dentro, nem fora dessa prisão. Mas não entendem, né? São tão incapazes de reconhecer os próprios erros que procuram culpar outros por isso.
- E do que iriam lhe culpar?
- Como falei, sempre pedem uma segunda chance. Mas o tempo que perdem me pedindo isso, seria o tempo de aproveitar o que tem. E não percebem que não importam quem foi levado delas, ou o que, mas sim o que tem agora.
- Nem sempre é assim. Muitas vezes, não sobra muito para “aproveitar”.
- Será? Ou será que ficam tão ocupados pensando e se lamentando pelo o que perderam, que são incapazes de seguir em frente mais uma vez. Não me entenda mal, não vejo problema quem tem seu tempo de luto… Mas, tudo nessa vida tem que se superar.
- Eu realmente não entendo, sabe? Como que alguém pode simplesmente… Continuar achando que é inocente, mesmo tendo provas que…
- Cada um só sofreu com fruto dos próprios atos. Ninguém pode dizer que fui eu. É algo natural, desde o começo da humanidade. Somos falhos, erramos e aprendemos. E mesmo que aprendamos algo, não significa que vamos errar de novo. Mas, às vezes estamos tão ocupados que não percebemos isso, e como falei, procuramos outro culpado para isso. Sejamos sinceros, é mais fácil culpar outra pessoa por algo que não temos resposta.
- Pelo visto não vai cooperar comigo. - diz indo em direção a porta.
- Pode sair, mas sabe que não estou errado.
- Achei que fosse mais perigoso. Mas é só mais um louco que está onde deve estar.
- Todos têm medo de mim, mas pelo o que acham de mim, porque os que me conhecem, me admiram.
- Quem iria admirar você!? - indaga incrédulo.
- Aqueles que sabem aproveitar cada segundo. Lembra do que mais me pedem?

O silêncio é a resposta momentânea, que é seguida de:

- Segundas chances. É o que todos querem. Mas, não percebem o óbvio: Às segundas chances estão a cada minuto que continuam vivos. Por isso nem todos conseguem me admirar.
- Você realmente não é normal.
- … Eu? Ou tem medo porque concorda comigo.

As luzes se apagam, e ela se senta no chão, ciente de que continuará sendo culpada por algo que não fez. Nada além de passos e uma risada é ouvida naquela sala. Talvez, aqueles ao seu redor saibam dessa injustiça, porém, se ela partir dali, não terão a quem recorrer quando seus próprios erros vierem à tona novamente. Assim, ela permanece, suportando a carga da culpa que não lhe pertence, uma testemunha solitária em meio à escuridão, esperando pelo momento em que a verdade virá à luz e trará a redenção que tanto merece.