- Tem certeza disso? –
pergunta Rafael, aflito, segurando o copo de água que seu amigo acaba de lhe
dar.
- Tenho sim! – responde
Ricardo, de forma relaxada e descontraída, apoiada no parapeito do corredor da
escola. – É por peso, né? E você deve ter o que? Uns quarenta e cinco...
Quarenta e seis...
- Deduziu isso só me
levantando?
- Claro, tenho prática.
Bebe logo, deixa de coisa.
Rafael vira o copo,
bebendo toda a água e de repente sua visão começa a escurecer e suas pernas
ficam fracas, se apoiando no bebedouro perto dele para não cair no chão.
- Calma, calma. – diz
Ricardo, indo até o amigo, apoiando seus braços para que fique de pé.
- Você... Botou quantas
gotas!?
Passos são ouvidos vindo
da escada, que fica próximo ao bebedouro, uma pessoa está subindo e é Lena, com
passos suaves e calmos. Seus olhos serenos miram na dupla e pergunta:
- Aí... – diz como se
soubesse o causador do problema. – O que você fez?
- Ele tava com dor de
cabeça de novo. Então descemos até a diretoria, pegamos um remédio e dei a ele.
- E você deu quanto? Ele
não parece bem. – fala ao chegar perto e examinar o Rafael.
- Três gotas.
- Hum, não parece muito.
- ... Por quilo.
- O QUE!?
O sinal que indica o
começo do intervalo toca, seguido das portas das salas de aula se abrindo e os
corredores vazios começam a se encher de alunos, andando de um lado ao outro,
mas com foco na escada, que Lena acabara de subir, impossibilitando deles
descerem com Rafael nesse estado.
- O que aconteceu com
ele? – pergunta um homem alto e negro, com uma voz grave e firme, olhando-os
fixamente através dos óculos retangulares.
- Professor!? – indaga
Ricardo assustado, soltando Rafael de uma vez no chão, que produz um leve
gemido de dor.
- O Rick exagerou na
dosagem do remédio que deu pro Rafa. Acho que a pressão dele baixou. – responde
Lena, ficando ereta diante ao professor.
- Meu Deus... Levem ele
para a sala dos professores. Vou pegar algo pra ele comer. – diz ao pegar
vantagem dentre os alunos e passar pela multidão.
- Pra ele é fácil... É
enorme. – diz Ricardo levantando o Rafael novamente, apoiando sobre seus
ombros, mas dessa vez com suporte de Lena.
Eles esperam o movimento
diminuir e descem as escadas, que dá acesso direto a cantina, com várias mesas
cheias de alunos e seguem para uma sala localizada no início do corredor, em
direção a saída. Batem na porta e entram, mas não havia ninguém naquela sala
espaçosa, com um sofá vermelho extenso de frente a outro, azul turquesa, onde
deve caber uns vinte professores. A decoração com as cores da escola deixa o
ambiente aconchegante, com espelhos, luzes nas paredes e um lustre no meio da
sala, tornando o espaço bem claro, mas sem incomodar a visão de quem entra.
Se sentam, com Rafael
entre eles, com os olhos pesados e o semblante nada agradável, apoiando sua
cabeça no ombro de Lena, como se estivesse prestes a dormir.
- Você é incrivelmente
irresponsável. – diz ela sem olhar para Ricardo, mantendo seu olhar fixo para a
parede a frente, com retratos dos professores em viagens e eventos escolares. –
Sinceramente, não sei como o Rafa ainda confia em você para essas coisas.
- Eu não fiz por mal.
Você fala como se eu quisesse matar meu melhor amigo.
- Se pelo menos tivesse a
atenção de ler a bula antes de medicar ele assim, não falaria como se quisesse
mandar ele pro outro lado.
- Parem de... Brigar... –
diz com a voz cambaleando.
- Não estamos brigando. –
dizem em coro.
A porta se abre e o mesmo
homem entra, com um prato de comida e um copo de algo que parece ser um suco.
- Vão comer, eu cuido
dele.
- A gente prefere ficar
aqui até ele melhorar.
- Ele precisa comer um
pouco pra regularizar a pressão. Vão, se não vão perder o lanche, depois vocês
vêm pra cá.
Eles se encaram por um
segundo e se levantam, obedecendo a ordem do professor, que se senta de frente
ao Rafael, que começa a comer.
- Essas dores de cabeça
ainda estão frequentes? – pergunta de forma franca, como se não quisesse
rodeios na resposta.
- Sim. A mãe diz que deve
ser problema na visão. – responde sem olhar para o professor, segurando a
colher com pouca força, mas o suficiente para a comida ir para sua boca.
- Sente que é isso?
- ... Não.
- Você é um bom aluno,
não tenho o que reclamar de você, mas essas dores são bem estranhas. Está
passando por algum momento difícil? Pode contar comigo.
- Eu não sei dizer,
professor. Parece que é... Não sei... Como se tivesse algo pra acontecer, sabe?
Não é uma simples dor de cabeça. Eu sinto todo o meu corpo queimar com essa
sensação.
- Próxima vez que sentir
esse tipo de dor, me procure que vou te liberar para ir para casa, okay? Não
precisa se entupir de remédios, vai te fazer mal se continuar assim. Ainda mais
se for o Ricardo cuidando de você.
Rafael solta uma risada e
continua a comer.
- Você disse que não é só
a cabeça que dói, não é?
- Isso.
- Pode ser psicológico,
parou pra pensar? Vou tentar marcar uma consulta para você com uma terapeuta
que eu conheço, pode lhe ajudar nisso.
- Não precisa de
incomodar, professor. Vou ficar bem.
- Se continuar perdendo
aulas assim, vai reprovar. E já está no último ano. Logo, logo vai pro ensino
médio e para isso precisa ter, além de boas notas, uma frequência boa para ser
aceito em uma boa escola.
- ... Certo.
A porta se abre novamente
e os meninos entram, com a clara reclamação de Ricardo ecoando na sala.
- Por que o Rafa ganha um
prato de comida de verdade? E a gente come só biscoito com... Sei lá o que é
isso. – diz ao se referir ao conteúdo no copo. – Algo entre água e leite.
- Eu não lembro de ter
visto você na minha aula. – diz o professor.
- Estava cuidando do
Rafa.
- Mas ele saiu já no fim
da aula, já você, nem entrou.
- ...Tava um pouco
ocupado.
- Rapaz, você está
desperdiçando seu potencial assim. – fala ao se levantar. – Podem ir aproveitar
o intervalo. Se sente melhor?
- Sim, senhor.
Os três saem e vão para a
cantina, deixar o prato e os copos. O clima prenunciando uma longa chuva deixa
tudo em tom de cinza, com as densas nuvens cobrindo o Sol, deixando Rafael um
pouco preocupado.
- Tomara que não chova
até eu chegar em casa.
- Não se preocupa, eu te
dou carona. – diz Ricardo.
- Carona? – pergunta
Lena.
- Vim com o carro do meu
pai.
- VOCÊ O QUE!?
- Brincadeira. – diz ele,
rindo da cara de perplexa que Lena fez. – Pera, você realmente acreditaria se
eu fizesse uma coisa dessa?
- Sem pensar duas vezes.
- Bom, eu não fiz. Mas,
posso ligar pra ele nos buscar hoje.
- Não precisa, relaxa.
Acho que não deve chover.
Eles se sentam juntos na
última mesa disponível na cantina, apoiam as costas na parede e observam os
colegas. Não tem muita novidade na escola Eduardo Albuquerque, nomeado
assim em homenagem ao fundador a cinquenta anos atrás, onde há um retrato
pintado a mão na entrada para deixar mais evidente tal homenagem. Os corredores
são calmos e as salas, exceto pela voz dos professores, são silenciosas. Tal
calmaria se deve ao fato de que para ser aceito nessa instituição, o candidato
tem que passar por três fases de uma prova, onde é testado seu raciocínio
lógico, sua coordenação e sua habilidade em tomar decisões, assim os poucos que
são aceitos, levam as regras à risca para continuar com suas vagas, já que só
em ter o nome da escola em seu histórico abre diferentes portas em seus
futuros.
Mas, diferente dos
selecionados, os dotados Rafael, Lena e Ricardo nunca mantiveram o padrão dos
restantes dos alunos, principalmente Ricardo, com comportamentos imprevisíveis
e muitas vezes pego no pátio da escola, matando as aulas que considera chatas.
Porém, por conta de ser o número um em várias disciplinas e o candidato
perfeito para levar mais uma vitória para a escola na competição tradicional
entre as escolas do estado, a gestão o mantém matriculado, sempre livrando sua
ficha de uma expulsão imediata, o que resulta em mais comportamentos
questionáveis.
Já Lena, embora não seja
o melhor dos exemplos dentre seus colegas só por andar com Ricardo, nunca foi
problema para os educandos, já que sempre foi ótima em seguir as regras e o
número de situações que foi pega violando os regimentos da escola foram mínimos,
se tornando a favorita dentre os professores nas aulas e a propaganda ideal
para a imagem da escola, sempre atraído novos candidatos. Sua paixão por vôlei
levou a escola a montar seu primeiro time, concorrendo a vitória os dois anos
que participaram, mas perdendo nas semifinais em ambas as vezes, apenas
deixando-a com sede de conquistar o primeiro lugar em seu terceiro e último ano
antes de ir para o ensino médio, assim deixando o time.
Rafael, ficando no meio
termo deles, nunca teve problema pois nunca apareceu. Sendo o último
classificado na lista do ano que se inscreveu, não é notado nas aulas e muito
menos em atividades extras. Mas, sempre junto dos dois, seja apoiando a amiga
nos jogos ou ajudando o amigo em seus planos para animar a escola. Deixando
apagado para o restante dos alunos, o que no início incomodava, mas quando
aprendeu a ver que há pequenas vantagens nisso, fez questão de continuar assim,
já que nunca esperavam demais dele ou não exigiam seu desempenho. O único que é
imune a isso é Tiago, o professor e tutor de Rafael, que viu no garoto
habilidades que não eram exigidos nas disciplinas, o que molda seus talentos,
assim, o tenta guiar o garoto em atividade que façam ele desenvolver de maneira
natural.
As aulas são retomadas, e
a atenção de Rafael é voltada para a janela da sala, que mostra nuvens densas
se formando, confirmando sua suspeita de chuva. Fica olhando fixamente para o
horizonte, não era muito comum naquela época do ano ter esse temporal, por isso
não estar preparado para voltar para casa na chuva e esperar a chuva passar não
parece uma opção, já que pelo visto, vai durar a noite toda.
As últimas duas aulas passam
rápido, tanto que mal percebeu quando acabou, com a mente ocupada com suas
preocupações e quando se deu conta, o quadro negro estava com algumas anotações
de atividades para serem resolvidas. Rafael se levanta e começa a arrumar suas
coisas na mochila, e ouve as pequenas e tímidas primeiras gotas de chuva caindo
no telhado e quando olha para a janela novamente, se assusta que a chuva já
começara.
- Droga.
- Não se preocupa. – diz
Lena. – Eu e as meninas vamos treinar na quadra. Lá é coberto, então se quiser
esperar a chuva passar lá... Pelo menos não vai esperar sozinho ou pegar uma
gripe indo nesse tempo.
- Por mim tudo bem.
- Então, vamos? – diz ao pôr
a sua mochila nas costas e ir para o corredor.
Rafael vai logo atrás
dela, descendo as escadas, mas ao invés de seguirem o fluxo de alunos, pegam a contramão,
indo para o banheiro que fica nos fundos da escola.
- Vou me trocar logo, vai
esperar?
- Vou sim.
Lena entra e Rafael
espera na porta. Em questão de minutos, os corredores já estavam vazios e com a
iluminação dependendo das fracas lâmpadas, já que a chuva engoliu o Sol daquele
fim de tarde.
- Não vai para casa? –
pergunta Tiago, saindo da diretoria.
- Vou ver o treino da
Lena e das meninas enquanto essa chuva não passa.
- Muito bom. – diz surpreso.
– É bom ver você se enturmando, finalmente.
- Obrigado... Eu acho.
- Cuidado e até amanhã.
- O senhor vai nessa chuva?
– pergunta, já que sempre ver o professor indo e voltando a pé.
- Eu vou pegar uma carona,
não se preocupa. – responde com um sorriso.
Lena sai do banheiro com
o uniforme do time e chama Rafael. Eles seguem por um estreito corredor e
chegam na quadra, onde já tem algumas meninas com o mesmo uniforme de Lena, esperando-a,
que cumprimentam e olham estranho para Rafael.
- Quem é? – pergunta uma
garota, de cabelo preto, liso e longo, com uma cara que parece ser escupida do
puro mármore, de pele morena e suave.
- É o Rafael. – responde outra
menina, ruiva e da pele clara, com os olhos verdes esmeralda, um pouco menor das
demais do grupo. – Oi.
- Oi, Raquel. – responde ele,
sem jeito.
- Achei que nossos
treinos eram fechados. – diz a de cabelo longo.
- E são. Mas, ele vai
ficar só hoje, enquanto a chuva não passa. – diz Lena, com a voz calma ao mesmo
tempo que autoritária. – E se alguma tiver problema com isso, pode falar
comigo.
Todas ficam em silêncio e
passam pelas arquibancadas, entrando finalmente na quadra, onde ficam em fila,
começando a realizar seus alongamentos.
Rafael sobe nas arquibancadas,
ficando nas últimas fileiras, tendo uma boa visão do local e perto das janelas,
observando a chuva bater violentamente no vidro.
- Essa chuva é bem
estranha. – diz Ricardo.
- Rick!? – indaga
assustado ao ver o amigo ali. – Achei que o treino era fechado.
- Pelo visto já conheceu
a chata da Lucia. – diz ao se sentar.
Suas roupas completamente
encharcadas, dando a resposta de que tentou enfrentar o temporal, mas pelo
visto saiu de um a zero.
- Por que disse que a
chuva é estranha?
- Por estarmos no verão. E,
veio do Sul.
- A maioria das chuvas
vem das nascentes, por conta da rotação da terra e tal... Essa veio do Sul.
- Ah. – Rafael nunca sabe
o que responder quando seus amigos dizem algo inteligente, já que tem medo de
falar e acabar passando de bobo.
- É, mas enfim, quem
explica Deus, né?
- Mas, ainda não
respondeu o que faz aqui.
- Quase sempre fico aqui
depois da aula. Vejo o treino das meninas e as vezes até dou um apoio moral.
- “Apoio moral”?
- Se liga. – diz ao tirar
um trompete que geralmente é usado em jogos e folias. – ARRASEM, PUMAS
SELVAGENS! – grita e toca o trompete com todo seu fôlego, fazendo o som ecoar por
todo o lugar. – Elas ado—
Antes que termine de
falar, é atingido por uma bola de vôlei, bem na cabeça. Rafael se assusta e
ajuda o amigo a se recuperar e quando olha para baixo, vê que foi Lucia a jogar
a bola, olhando para eles com um semblante vitorioso. Mas, Ricardo parecia
esperar por isso, já que estava rindo.
- Dessa vez ela acertou.
- Machucou?
- Que nada... Só um arranhão.
Rafael viu mais que um
simples arranhão, e sim um inchaço se formando em volta do olho direito.
- É, sem problema. – diz ao
ver a cara de preocupação do amigo. – As gatas gostam. Dá um ar de badboy.
- Tenta não provocar
mais.
- Parece tenso, tá tudo
bem?
- Tudo, tudo.
- Fala, o que houve?
Rafael dá um longo e
forte suspiro. Olha para o treino das meninas e responde, sem olhar para seu
amigo.
- Essas dores... Eu tô
começando a ficar preocupado. Elas vêm de repente e demoram para passar.
- Já foi ao médico ver
isso?
- Sim, já fiz vários
exames. E todos mostram o mesmo resultado. Não tem nada de errado com minha
cabeça. Tiago deu o entender que pode ser psicológico, vai tentar marcar uma
terapia pra mim.
- E por que não parece
feliz com isso?
- Sei lá... Elas vão e
vem, parece um aviso ou algo assim. E se isso for psicológico... Não vou saber
como reagir.
Ricardo põe a mão em seu
ombro e diz: “Seja o que for, desconheço situação que você não deu conta... E
sabe que sempre pode contar comigo e com a Lena.”
Rafael solta um sorriso,
aliviado por seu amigo entender, mas aquela sensação de aflição parece não ter
saído completamente, assim como as palavras que não conseguiu dizer.
Eles assistem o treino,
com Rafael fazendo de tudo para que Ricardo não leve outra bolada.
A noite cai completamente,
as meninas começam a se despedir e os meninos descem, indo para o encontro de Lena.
- Caramba, ainda tá
chovendo. – diz ela, surpresa.
- Sim, vai ser barra pra
gente ir pra casa.
- Não tá tão forte, acho
que consigo dirigir. – diz Ricardo.
- O que!? – perguntam em
coro.
- Tô de carro.
- Você disse que não tava.
– diz Lena.
- Não, eu disse que não
estava com o do meu pai. Esse é o da minha mãe.
- Irresponsável. Você é
de menor! Se a guarda ver você, meu Deus do céu.
- Okay, perdeu a chance
de ir no banco da frente. – fala em tom de brincadeira, como se não acabasse de
ouvir um sermão. – E você, Rafa? Na frente ou também tá com medinho?
- Você realmente sabe
dirigir?
- Eu já enganei vocês?
- Já! – respondem juntos.
- Que mundo ingrato.
Eles caminham até a portaria,
vazia, somente o porteiro sentado, assistindo o céu cair sobre a estrada.
- Boa noite, seu Cleiton.
- Boa noite, meninos.
- Vamos? – pergunta Ricardo,
a um passo de entrar debaixo da água, assim como eles, molhando levemente seus
rostos. – O carro tá logo ali no fim da rua.
- Vamos, né? – fala Rafael,
sem muita certeza com sua própria afirmação.
- Vai na frente pra abrir
o carro. – diz Lena, procurando o veículo, mas a chuva densa dificulta sua
busca.
Ricardo pega a chave do
carro, e com um clique eles veem as luzes de alerta acenderem.
- Três... – diz Ricardo.
- Dois... – continua Rafael.
- ... Um! Vamos! – fala
Lena, dando partida para eles correrem em direção ao polo azul estacionado a
alguns metros deles.
Correm, rindo da situação,
desviando dos buracos e cobrindo os olhos para conseguirem ver um pouco melhor
o que está na frente deles. Ricardo não teve essa sorte e escorrega na primeira
poça de lama que passa. Eles voltam para ajudar o amigo, não conseguindo
controlar as risadas e se questionando onde está a chave, mas quando veem,
estava descendo pelo córrego, deixando-os mais frenéticos para pegar e quando
Rafael pula para alcançar, Lena extrapola e cai por cima dele, mas ainda, sem
conseguirem parar de rir. Naquela altura, enxarcados, mas pouco importa para
eles, já que quando as três energias deles se entrelaçam, o restante do mundo
não parece importar.
Finalmente dentro do
carro, Ricardo liga o aquecedor e sai devagar, indo em direção da casa de Lena.
Todos ofegantes, ficam em silêncio, recuperando o ar. Rafael, sentado no banco
do passageiro observa a cidade sendo banhada pelas nuvens, apoia sua cabeça no vidro
e descansa um pouco.
Lena e Ricardo conversam
entre si, mas ele não os ouve, a dor começa novamente e dessa vez o deixa quase
surdo, não ouvindo nada mais que sua própria respiração ficando ofegante e um som
agudo, como um longo e fino grito. Sai da realidade por uns momentos e olha
para frente, fora do carro, ver uma silhueta, uma pessoa correndo no meio da
chuva, indo em direção a algumas árvores em um terreno abandonado e de repente
grita: “PARA!” como se a palavra não fosse sua, mas saísse pela sua garganta
antes mesmo de entender o porquê.
Ricardo freia de uma vez,
que por a pista está molhada, derrapa alguns metros, jogando-os para frente.
- O que foi!?
- Rafa, tá tudo bem!? –
pergunta Lena, assustada.
- Tem alguém ali, indo
pra floresta, a gente precisa ir lá.
- Onde? – pergunta Ricardo,
procurando ver alguma coisa em direção as árvores.
- Acreditem em mim, por
favor. – diz pondo a mão na testa, pressionando na tentativa de amenizar a dor.
Ricardo olha para Lena,
que retribui a expressão de preocupação e confusão.
Pega a estrada de terra e
vai em direção a floresta que fica entre dois bairros, geralmente usado como
atalho para os ciclistas e pedestres que preferem evitar a avenida. Não é uma
floresta como chamam, e sim um bosque com um rio cortando no meio, mas os
moradores chamam de floresta por as árvores serem, ao mesmo tempo que
afastadas, deixarem o clima dentro bem densa, com as copas se encontrando e
cobrindo quase toda a luz solar.
Ricardo para até onde o
carro consegue ir, pois as raízes e as árvores menores impedem acesso que não
seja a pé.
- Não precisam ir, eu olho
sozinho. – diz Rafael, abrindo a porta e saindo do carro.
- O que ele tem? –
pergunta Lena, confusa.
- Eu já o vi assim. Quando
essas dores começaram...
- Quando?
- Faz um tempo. Estávamos
voltando para casa, de bicicleta e de repente ele começou a sentir essa dor. Paramos
e esperamos passar, quando ele se recuperou, disse para pegarmos outro caminho.
Ele não disse o motivo nem anda, simplesmente disse, como se fosse uma
intuição.
- Então?
- ... Um caminhão virou no
caminho que a gente tava indo.
- O que!?
- O motorista perdeu o controle
acabou subindo a calçada. Por sorte, não tinha ninguém, mas era a calçada que estaríamos
se estivéssemos ido pelo mesmo caminho. Desde então, nunca mais duvidei dele. É
como se... Alguém avisasse ele.
- Por que nunca me contaram?
- Você é muito racional,
ia dá alguma sugestão óbvia. E, nem ele mesmo sabe disso. Vê só como um
incomodo passageiro. Por isso, vou com ele. Fica aqui, pra não pegar uma gripe
nessa chuva.
Ricardo sai do carro e
fecha a porta, mas o som da porta fechando se repete; Lena saiu junto com ele. “Eu
não vou deixar vocês sozinhos aqui” diz ela, fazendo-o soltar um leve sorriso
de canto de boca.
Eles vão em direção ao
Rafael, que entrou sem destino entre as árvores, procurando algo ou alguém que
tenha visto, no fundo torcendo que fosse coisa da sua cabeça. Para e olha ao
redor, tudo parecia normal, sem sinal de pessoas andando, muito menos uma perseguição.
Sim, coisa da sua cabeça.
- Rafa! – ouve ao longe
Ricardo gritar, com a voz sendo abafada pelas folhas.
- Eu tô aqui! – diz de
volta, tentando ser localizado.
- “Aqui”? Aqui onde, véi?
– ouve seu amigo dizer, fazendo-o rir de alívio em afirmar que de fato era seu
amigo.
Ele dá alguns passos em
direção a voz dele, mas o chão abaixo de seus pés se desfaz, fazendo o cair em
um pequeno desfiladeiro ali, que não tinha notado. Rola por alguns segundos,
caindo perto do rio que corta o bosque.
Olha ao redor, abrindo os
olhos devagar. O lugar está escuro, as gotas de chuvas quase não caem em seu
rosto, as árvores o protegem ali. A escuridão é tirada de foco com vários
vagalumes aparecendo lentamente, iluminando sua frente, fazendo-o ver algo
curioso...
- Ei! Tá tudo bem? AÍ! – reclama
da dor de seu joelho, dificultando se levantar.
Se apoiando em uma pedra
próxima, ele se levanta e ver com mais clareza uma pessoa, uma garota. Com
certa dificuldade para andar, vai até ela.
Deitada, desacordada, logo
a frente dele. Os vagalumes voam ao redor, deixando seu rosto sereno bem a
vista, mas algo diferente acontece, algumas flores ali começam a brilhar, como
luzes fluorescentes, clareando ainda mais e fazendo-o ver seus cabelos loiros claro,
quase brancos, mas com as pontas sendo de cor azul, bem vivo.
Olha ao redor para achar
alguma coisa que explique ela ali, mas nada que possa ajudar. Como se ela
tivesse simplesmente aparecido ali, como se estivesse esperando. Aguardando ser
achada.